Volta do futebol no Rio sela aliança entre Flamengo e Bolsonaro em afronta à Globo

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No mesmo dia da retomada do Campeonato Carioca, presidente assinou MP que favorece clube rubro-negro em negociações por direitos de transmissão de seus jogos

Desde as primeiras semanas de paralisação do futebol por causa da pandemia de coronavírus, o Flamengo se movimentou para liderar a articulação pela volta dos campeonatos, espelhando-se em práticas adotadas em ligas europeias ao elaborar um protocolo de saúde que prevê testagem constante de jogadores e funcionários.

Amparado pelo documento, o clube retomou treinamentos antes mesmo de receber o aval de Prefeitura e Governo do Rio de Janeiro, em maio, quando o Estado já registrava diariamente mais de 150 mortes por covid-19. Depois de rodadas de reuniões com autoridades, incluindo a ida de dirigentes a Brasília em busca da chancela do Governo Federal, o time conseguiu ser o primeiro grande do país a retornar aos gramados nesta quinta-feira, enfrentando o Bangu pelo Campeonato Carioca.

Por trás das tratativas pelos jogos, o clube mais popular do país obteve um trunfo que norteou a aproximação de seus dirigentes do circuito político. No mesmo dia da partida que reabriu o torneio interrompido em março, o presidente Jair Bolsonaro editou a MP 984, que altera dispositivos da Lei Pelé devido às consequências da pandemia para o negócio do futebol. Entre as mudanças impostas pela medida provisória, a que mais chamou atenção, atendendo à solicitação do presidente do Flamengo, Rodolfo Landim, que desde o início de seu mandato tem se empenhado em estreitar laços com o Governo Bolsonaro, é a que reconfigura o modelo de negociação dos direitos de transmissão das partidas.

Com a nova regra, clubes podem, em princípio, comercializar o televisionamento de todos os seus jogos como mandante, e as emissoras detentoras dos direitos não precisarão mais da anuência das equipes visitantes para transmitir os duelos, como acontece atualmente. A jogada uniu interesses comuns de Flamengo e Bolsonaro, que alimenta um embate declarado com a Globo, dona dos direitos de transmissão dos principais campeonatos pelo Brasil. Neste ano, o grupo ainda não entrou em acordo com o clube rubro-negro pela exibição de suas partidas no torneio estadual. Por reivindicar mais dinheiro que o desembolsado a adversários, a diretoria flamenguista passou a aventar novas modalidades de faturamento, como a comercialização de jogos via streaming, e entende que, negociando os direitos de mandante, tem condições de alavancar receitas por meio de acordos individuais.

Embora Landim sublinhe que a medida provisória será benéfica para todos os clubes, o modelo lançado na base da canetada pelo Governo não é consensual entre dirigentes, receosos de que a negociação nesses moldes amplie o poderio econômico de clubes mais ricos e populares como o Flamengo. “Estamos indo na contramão das maiores ligas de futebol do mundo. Portugal, com negociação dessa forma, tem a maior disparidade entre os dois clubes maiores e o restante”, criticou Mário Bittencourt, presidente do Fluminense, que votou contra a volta apressada do Campeonato Carioca e se recusa a jogar nas datas estabelecidas pela federação local (FERJ), em entrevista ao Sportv. “A MP foi editada no meio de uma pandemia, sem a participação dos clubes. Sequer fomos consultados. Já está errado pela maneira como foi feito.”

Há dirigentes, entretanto, que concordam com a adoção do critério de autonomia às equipes mandantes, a exemplo dos representantes de Athletico Paranaense e Bahia. Eles enxergam uma oportunidade de consórcio entre clubes para venda em conjunto dos direitos de transmissão. “A MP não provoca a união de todos os clubes, mas fortalece muito a união daqueles que já desejam isso”, argumenta o presidente do Bahia, Guilherme Bellintani. “Talvez um grande bloco, formado por clubes com afinidades e senso de coletividade, seja o próximo passo do futebol brasileiro.”

Enquanto cartolas se dividem sobre a questão, o comando do Flamengo prepara a segunda parte da investida, engatilhando conversas com parlamentares pela aprovação da medida no Congresso. A sintonia com o Governo Bolsonaro e sua bancada de aliados é considerada uma carta na manga dos dirigentes, que, a partir do relacionamento construído no ano passado, se aproximaram ainda mais do presidente no esforço de apressar a volta do futebol. Em empreitada pessoal para afrouxar as medidas de isolamento social decretadas por governadores e prefeitos, Bolsonaro aposta na retomada das competições como uma mensagem de volta à normalidade aos setores produtivos, em que pese o fato do país ainda registrar a cada dia média superior a 1.000 óbitos e ter ultrapassado a marca de 1 milhão de infectados por coronavírus. “Se depender de mim, o futebol já pode voltar”, afirmou o presidente após encontro com o mandatário do Flamengo, em 19 de maio.

Criticado por alas da torcida rubro-negra pelo alinhamento com o Governo a fim de apressar o retorno aos campos, Rodolfo Landim se justificou dizendo que apenas trabalha em favor dos interesses do Flamengo. “Para mim, não importa a orientação política das autoridades. Busco a todas no sentido de conseguir os apoios que precisamos para melhorar continuamente o nosso Flamengo”, escreveu o dirigente em uma carta. Da aliança com Bolsonaro, Landim detectou a chance de conciliação de interesses na queda de braço com a Globo, que, por sua vez, emitiu nota informando que a MP preserva os contratos já assinados. “A nova medida provisória não afeta as competições cujos direitos já foram cedidos pelos clubes, seja para as temporadas atuais ou futuras”, afirmou a emissora, que não transmitiu a partida de reabertura do Campeonato Carioca.

Sem público no estádio nem televisionamento do confronto a seus torcedores, o Flamengo derrotou o Bangu por 3 a 0. “Toda a sociedade vai ter de se adaptar enquanto não tiver uma vacina. O importante é saber viver, respeitar o vírus, mas não ter medo dele. Os times de futebol têm esse privilégio de testar constantemente e de atuar ao ar livre. O Flamengo trabalha em segurança”, disse após o jogo o técnico Jorge Jesus. A partida com portões fechados foi realizada no Maracanã, onde está instalado um hospital de campanha que, nesta quinta, registrou duas das 274 mortes confirmadas por coronavírus no Rio de Janeiro, o Estado com a maior taxa de letalidade da doença. Na semana em que o lendário estádio completou 70 anos, a atmosfera fúnebre das arquibancadas vazias serviu como pano de fundo para o primeiro capítulo de uma jogada política que transcorreu nos bastidores indiferente à pandemia.

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